Série usa fatos como trampolim para dramatização surrealista (e irresistível) de homem e ícone
Se os três ótimos capítulos iniciais de 'O Rei da TV' indicavam que estava ali uma telebiografia ácida, mas ainda assim de estrutura tradicional, dedicada à figura mitológica de Silvio Santos — a primeira já feita na história —, era apenas para preparar o terreno para algo muito mais ousado que viria a seguir. Isso porque a produção da Gullane Entretenimento para o Star+ começa a enveredar por um caminho muito mais subjetivo de análise, abraçando um humor mais irônico e sombrio, e colocando o Homem do Baú em cenários oníricos que avançam a qualidade artística da sua narrativa.
É uma decisão ousada que vale muito a pena porque 'O Rei da TV' não se propõe a revelar grandes novidades sobre a vida de Silvio, mas sim escrutinar e correlacionar momentos históricos já bem midiatizados sobre não só a persona de palco, quanto o homem que a criou: Senor Abravanel. São três as passagens-chave, começando da juventude trabalhando como camelô, no Rio de Janeiro dos anos 1950; desaguando no sucesso inicial na TV dos anos 1960, que veio acompanhado da negligência com sua primeira esposa; e saltando para a crise de saúde que quase o fez perder a voz, em 1988. Do momento inicial, os roteiristas Mikael de Albuquerque, André Barcinski e Ricardo Grynszpan tiram a motivação inabalável de Senor, vital para compreender as atitudes mais antiéticas e moralmente questionáveis que denunciarão a seguir. Do seguinte, extraem seu grande ponto de virada enquanto homem, comunicador e empresário, explicitando a mentalidade que tornou Silvio uma fachada para suas próprias falhas. E, do final, tomam emprestado seu principal conflito interno e estopim de novas mudanças, abrindo horizontes para seguir contando essa história.
Mais do que construir um drama cênico competente a partir de fatos, esse tear de três eventos notórios permite que o texto de 'O Rei da TV' encontre novidade não no que traz em primeiro plano, mas no que ganha em sua camada subjetiva. Assim, Silvio Santos e Senor Abravanel se tornam personas distintas e conflitantes, eventualmente transformando-se em protagonistas de cenários farsescos saídos de suas próprias cabeças. Esses delírios psicológicos, todos cuidadosamente atrelados aos três momentos históricos que norteiam a trama, são representados em tela com uma criatividade irresistível sob tutela da direção de Marcus Baldini ('Bruna Surfistinha') Carol Minêm ('Macho Macho Man') e Julia Jordão ('O Negócio') e da equipe técnica igualmente capaz que comandaram. Só uma sequência musical diretamente inspirada no clássico videoclipe "Weapon of Choice", estrelado por Christopher Walken, já basta como exemplo para o trabalho inspirado do grupo.
Assim, a série foge do lugar-comum ao optar por retratar a complexidade de Silvio Santos não só em ações, tampouco apenas em diálogos, mas também em sequências visuais assumidamente surrealistas e que flertam com tons e gêneros dissonantes aos propostos inicialmente pela produção. Em uma divagação sobre a idoneidade do Baú da Felicidade, por exemplo, Silvio escapa para uma fantasia perturbadora em que uma criança discute com a Vovó Mafalda sobre fraude. Quando começa a pensar em sua própria ruína, ele é visitado por visões do banco do humorístico 'A Praça É Nossa', por um conflito com a personagem da Velha Surda, e por uma bizarra recriação das pragas bíblicas do Egito. E, quando enfim precisa enfrentar seus erros, é forçado a confrontar fantasmas do passado reencarnados à sua frente, ora em um baú de metal em lenta inundação, ora em uma sala de cirurgias abandonada.
É empolgante ver uma produção nacional tão afinada em levar a cabo decisões assim, no limite do disruptivo. Apesar do risco, em todo momento 'O Rei da TV' parece blindada de qualquer dissonância criativa, seja em sua minuciosa direção de arte — que merece ser citada primeiro pois recria com enorme eficiência econômica e grande esmero estético diferentes décadas, cenários históricos da TV e figuras populares inesquecíveis — em seu trabalho de som, em sua fotografia ou em suas performances.
Falando nisso, José Rubens Chachá, Mariano Mattos Martins e Guilherme Reis vivem Senor e Silvio em sua maturidade, início de sucesso e infância, respectivamente, e os três conseguem balancear com sensibilidade suas próprias características artísticas e as marcas caricatas do ícone. Há uma certa ousadia na ideia de fugir tanto da imitação de Silvio quanto faz 'O Rei da TV', mas a decisão se torna um acerto justamente porque o trio nunca permite que uma ou outra marca do padrão de fala icônico do apresentador desapareça por completo. Eles aparecem à vontade em tela, mas só porque foram capazes de vestir o Silvio-caricatura, despi-lo e mergulhar no Silvio que eles mesmos construíram — e que, apesar de suas inerentes diferenças, funciona muito bem em conjunto.
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