Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "Carta póstuma"
Há exatos 150 anos, deixei minha terra natal, Viena, na Áustria, rumo a um novo país, com melhores oportunidades e alheio às guerras que assolavam a Europa. Ansiava estar longe do cenário de tantos acontecimentos trágicos. Sabia que não poderia apagar a dolorosa reminiscência que insistia orbitar meu coração e mente, mas me animava a ideia de ressignificar a vida com memórias mais felizes.
Depois de passar meses em um hospital de sangue, devido a feridas contraídas na guerra, onde vi sucumbir amigos e familiares; depois de perder meu pai, que não resistiu após longo tratamento em um manicômio; e também vivenciar o passamento de minha mãe, abatida pela tuberculose quando eu tinha apenas 10 anos, minha alma clamava um recomeço.
Ouvi então falar do Brasil, onde se instalava uma incipiente, mas promissora estrutura ferroviária, que bem serviria ao meu propósito como engenheiro agrimensor. Deixei a Europa sem saber o que esperar desse novo e desconhecido país. Não tinha planos bem definidos, mas àquela altura, com pouca idade, mas muita bagagem de experiências acumuladas, senti-me aberto e liberto; apto a iniciar esse novo capítulo. O que seria feito dali em diante não competia a mim, mas às casualidades que somente a mão invisível do destino, paulatinamente, viria a revelar.
Depois de idas e vindas em ferrovias pelo Brasil, conheci a princesa. Não me refiro à compatriota, princesa Leopoldina, mas sim à princesa dos Campos Gerais, minha estimada Ponta Grossa, local onde, finalmente, pude construir um lar. O que vivi nesta cidade bem daria um livro, mas creio que um parágrafo pode resumir.
Foi aqui que conheci e casei com uma mulher que compreendeu e aceitou toda minha complexidade. Não preenchia ela o ideário de esposa frágil, calada e submissa, mas era justamente esse tipo de alma, inquieta e desafiadora, que me completava. Foi aqui que plantei o eucalipto que até hoje adorna o bairro de Santa Terezinha e por meio do qual pude materializar o trabalho que, de minha mão brotou, em auxílio à construção dessa cidade. Por fim, foi aqui que deixei minha descendência e transmiti meu legado mais rico. Por intermédio dela, nas palavras da minha dileta Anita, pude ver no papel, a expressão da virtuosa paisagem que também eu contemplava; o sentimento que dela transcendia, que eu também compartilhava: “Nesta terra é assim: quando termina o dia, uma mão invisível, misteriosa, pinta onde acaba o céu, e com as tintas que quer, Pinta tudo que há de emocionante”.
Texto de autoria de Lívia Kim Philipovsky Schroeder Reis, bacharel em Direito, analista judiciária da Justiça Federal do Paraná, Brasília (natural de Ponta Grossa), escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais
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