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Entenda como funciona a Lei Rouanet e por que virou alvo de desinformação

Saiba como funciona todo o processo da Lei de incentivo á Cultura do Governo Federal e também a desinformação que este recurso importante vem sofrendo

Na imagem, a posse de Margareth Menezes como Ministra da Cultura ao lado do presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva.


Embora o incentivo à cultura seja um dever do Estado estabelecido pela Constituição Federal (artigo 215), a promoção desse direito constitucional pelo governo foi alvo recorrente de desinformação nos últimos cinco anos. O período coincide com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2018, e os quatro anos de sua gestão.


A mudança de comando no Palácio do Planalto, a partir de janeiro de 2023, e os primeiros anúncios do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, entretanto, reacenderam os ataques contra a política pública, criada há 32 anos.

Foto: Reprodução/Lupa

Uma busca pelos termos “lei rouanet” e “mamata lei rouanet” entre 1º de janeiro de 2017 e 28 de fevereiro de 2023 no CrowdTangle, ferramenta de monitoramento das redes sociais, mostrou que os principais picos de interações em publicações sobre o tema ocorreram no segundo semestre de 2018 e ao longo de 2022 — anos de eleições gerais no país. Nesses períodos foram identificados posts falsos ou com informações distorcidas sobre o funcionamento do programa.

Foto: Reprodução/Lupa

Mais recentemente, conteúdos falsos arrastaram para o centro das ofensivas a atriz Claudia Raia, erroneamente acusada de “receber” R$ 5 milhões do governo. Na verdade, um projeto para montagem de duas peças de teatro do qual a artista faz parte recebeu autorização para captar o valor, ou seja, os produtores agora podem buscar patrocinadores em troca de renúncia fiscal.

Foto: Reprodução/Lupa

No começo de fevereiro, quando foram divulgados planos para aumentar o cachê de artistas e alterar alguns termos da lei, uma nova rodada de conteúdos enganosos e distorcidos se espalhou pelas redes, recorrendo à mesma narrativa de 2018 e 2022: a de que os artistas que usufruem do programa “mamam” no governo.


A Lupa ouviu três especialistas para explicar as principais regras, as mudanças realizadas pelo governo Bolsonaro e as críticas da própria classe cultural a esse programa. Vale ressaltar, desde já, que a lei não não tira dinheiro da saúde ou da educação, não é voltada apenas para famosos e que o governo não repassa dinheiro diretamente aos artistas.


Como funciona a Lei Rouanet

Lei Rouanet é o nome popularmente usado para um amplo programa de financiamento público de cultura: o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Criado em 1991, pela Lei nº 8.313 (o nome homenageia o secretário de Cultura à época, Sérgio Paulo Rouanet), o Pronac é formado por três mecanismos diferentes: o Incentivo à Cultura (por meio de renúncia fiscal), o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficarts).


Desses três mecanismos, o mais conhecido é o Incentivo à Cultura, que acabou se tornando o aspecto mais conhecido da Lei Rouanet. Trata-se de um modo indireto de o Estado financiar projetos, uma vez que, diferentemente do que alegam publicações falsas sobre o tema, não há qualquer repasse direto de dinheiro do governo federal para artistas ou produtores culturais.


Na prática, funciona assim: pessoas físicas ou empresas privadas podem destinar um percentual (previsto em lei) de seu Imposto de Renda para financiar projetos culturais que tenham sido previamente aprovados por um corpo técnico. O governo, então, abre mão desse imposto para que o dinheiro seja usado para realização do projeto.

Foto: Reprodução

Empresas têm a palavra final

Um projeto cultural só pode ser executado com recursos oriundos da Lei de Incentivo à Cultura se seguir alguns pré-requisitos, como contrapartidas sociais, por exemplo, e se for validado por um corpo técnico (pareceristas). Esse corpo técnico, por sua vez, autoriza os produtores desse projeto a captar recursos.


Além disso, mesmo que seja aprovada, a iniciativa só receberá, de fato, dinheiro para execução caso alguma empresa ou pessoa física queira patrocinar. Esse é exatamente um dos pontos normalmente omitidos ou distorcidos em conteúdos desinformativos sobre a Lei Rouanet.


Isso porque nem todos os projetos aprovados que estão listados no VersaLic – ferramenta a partir da qual qualquer cidadão pode consultar os projetos culturais – conseguiram ou conseguirão captar os recursos mínimos. Cada proposta tem um prazo de até 24 meses para captar o valor proposto.


Especialistas ouvidos pela Lupa convergem no entendimento de que um dos principais problemas da Lei Rouanet — uma crítica que já era antiga e anterior ao governo Bolsonaro — é que, ao final, cabe aos setores de marketing de empresas a decisão sobre quais projetos patrocinam ou não. "Naturalmente, empresas que patrocinam priorizam projetos grandes e com maior visibilidade”, observa a professora do Mestrado Profissional em Gestão da Economia Criativa da ESPM, Luciana Guilherme.


O mito de “mamar nas tetas do governo”

Ainda que a frase “mamar nas tetas do governo” tenha sido usada para acusar artistas que tiveram projetos executados por meio da Lei de Incentivo à Cultura, tal atitude ignora que o acesso à cultura, por ser um direito constitucional tanto quanto a saúde e a educação, é um dever do Estado.


 
“O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (...)”

Constituição Federal de 1988, artigo 215

Além disso, a Lei Rouanet representa uma das menores renúncias fiscais do país. Em 2018, representou apenas 0,48% do que o Brasil deixou de arrecadar em impostos com todos os programas de incentivo. Para 2023, o Ministério da Cultura anunciou, em suas redes sociais, que o valor autorizado para aplicação na Lei Rouanet corresponde a 0,45% de toda a renúncia fiscal autorizada pelo governo federal.


Para a professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) Giuliana Kauark, pesquisadora da área de política cultural, há um problema que nenhum governo ainda conseguiu resolver: ampliar a compreensão de que cultura faz parte da cidadania. Para ela, o pleno entendimento desse direito poderia reduzir a desinformação. “Para que um indivíduo tenha plena cidadania, tem que ter direito à saúde, educação, cultura. Está na Constituição, mas está longe de isso ser uma compreensão. Historicamente, cultura é para poucos. Então, é possível que se tenha um entendimento defasado”, reflete.


A pesquisadora pondera que o direito prevê uma divisão segundo a qual o Estado tem que ter uma ação negativa, ou seja, não deve dizer o que pode ser considerado cultura, mas ao mesmo tempo precisa ter uma ação positiva para implementar ações que favorecem e incentivam o direito à cultura. “A política de incentivo se dissolve por meio de várias ações, inclusive o financiamento, tanto como acontece em outras pastas, como a saúde, a educação e a infraestrutura".


Kauark também pontua que o Estado não pode, ele mesmo, produzir cultura, porque isso seria autoritarismo. “Então, para garantir que essa cultura seja de fato democrática e produzida pela sociedade, o financiamento é para que a sociedade possa se organizar e produzir”.


Além disso, o Brasil é signatário da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade Cultural da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “O Pronac está colocado como uma das principais medidas para essa convenção. E não tem como pensar a diversidade cultural sem pensar no financiamento ́ público. Não se pode diminuir as políticas culturais em fomento, mas os fomentos são fundamentais”, conclui a professora baiana.


O que mudou no governo Bolsonaro

Ao longo de sua gestão, Bolsonaro recorreu a medidas infralegais, como portarias e instruções normativas (IN), para fazer modificações em algumas regras da Lei Rouanet. Um exemplo foi a Instrução Normativa nº 2, de 23 de abril de 2019, que, entre outros pontos, reduziu o teto do valor de captação de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão (artigo 4º). Essa IN ainda está em vigor.


Antes de ser eleito em 2018, o ex-presidente disse que iria “acabar com a mamata”. A promessa de descentralizar a Lei Rouanet e destinar recursos para outras regiões do Brasil além do eixo Rio-São Paulo — que era, justamente, uma das principais críticas, feita pelo próprio setor cultural — não foi cumprida. A gestão de Bolsonaro contribuiu para o que especialistas chamam de desmonte do setor das políticas públicas culturais, a começar pela extição do Ministério da Cultura, que na gestão passada foi rebaixado a Secretaria Especial da Cultura. Intelectuais também listam cortes orçamentários para a pasta, redução de profissionais e alterações na Lei de Incentivo.


Levantamento feito no ano passado pela Folha de S.Paulo mostrou que, durante o governo Bolsonaro, a região Sudeste concentrou 74,8% do dinheiro captado em 2020. Em 2021, 70,95% se concentraram em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Já a região Nordeste teve 7,82% dos recursos em 2020 e 7,05% em 2021. Além disso, Jair Bolsonaro aprovou cinco dos 20 projetos mais caros da história da Lei Rouanet.


Para a professora Giuliana Kauark, da UFRB, as mudanças promovidas por Bolsonaro na lei são um reflexo do que foi a relação do governo dele com a cultura de maneira geral. “Percebo alguns elementos muito fortes: o desmonte institucional; o estrangulamento orçamentário; a descontinuidade de políticas, ações e projetos que eram fundamentais; e, por fim, a prática de trabalhar em torno de projetos financiados por emendas parlamentares”, enfatiza.


Outras medidas infralegais, alinhadas ao negacionismo do governo federal em relação à pandemia, afetaram propostas culturais inscritas na Lei de Incentivo. É o caso de uma portaria vetando a exigência de carteiras de vacinação para entrada em eventos e ainda a suspensão da Lei Rouanet nas cidades onde medidas de distanciamento social em razão da Covid-19 foram adotadas.


Importante pontuar que, em 2021, o governo Bolsonaro fez alterações na Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), órgão responsável por analisar e opinar sobre as propostas culturais inscritas. Com as mudanças, a CNIC perdeu o caráter deliberativo. Além disso, o poder de decisão passou a ficar com o presidente da comissão, cargo ocupado pelo então secretário de Cultura ou seu representante. Com isso, recaiu sobre um único gestor, de confiança de Bolsonaro, a decisão final sobre a autorização de projetos.


Ainda em 2021, um novo texto do Pronac mudou algumas categorias, que antes eram de acordo com as áreas de produção, como artes cênicas, audiovisual e música. A divisão, por exemplo, passou a incluir "arte sacra", "belas artes" e "arte contemporânea".


Um histórico das fakes

Em dezembro de 2022, a pesquisadora Fernanda Pimenta, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), defendeu uma dissertação de mestrado na qual analisou o clima criado em torno da Lei Rouanet nas redes sociais, sobretudo no Twitter. Durante a pesquisa, ela identificou que as “fakes” sobre o programa se intensificaram especialmente a partir de 2018.


“Percebi que eram outras pessoas que não os artistas falando sobre a Lei Rouanet. Eram pessoas da extrema-direita que passaram a absorver as críticas que eram já feitas, afinal o setor cultural e a própria esquerda sempre criticaram alguns aspectos do programa, como a concentração do recurso no Sudeste e o fato de que propostas com famosos captavam com mais facilidade”, diz Pimenta.


Na mesma linha, a professora da UFRB, Giuliana Kauark, afirma que, embora já existisse um debate e críticas sobre o assunto, a diferença é que não havia a intenção de estigmatizar ou execrar o programa. “A retórica da mamata foi muito contundente. Durante a gestão de Bolsonaro, utilizou-se muito o recurso da auditagem como estratégia de moralização: ‘antes todos mamavam nas tetas e agora não mais’. E isso foi usado para desqualificar a produção cultural”, enfatiza.


Impacto na indústria criativa

Os cachês pagos para artistas que recebem recursos por meio da Lei Rouanet são limitados em alguns valores. Em fevereiro de 2022, uma instrução normativa alterou o valor máximo que poderia ser pago até então. Artistas solo, por exemplo, que antes poderiam receber até R$ 45 mil, tiveram limite estabelecido em R$ 3 mil por apresentação (artigo 17) no ano passado. O ordenado de maestros também caiu de R$ 45 mil para R$ 15 mil. A medida também reduziu o teto de captação para as atividades de “tipicidade normal”, como teatro, por exemplo, de R$ 1 milhão para R$ 500 mil.


Sobre os montantes repassados para a execução desses projetos, a professora do mestrado profissional em Gestão da Economia Criativa da ESPM, Luciana Guilherme, chama atenção ao fato de que cultura é, além de expressão e cidadania, também uma fonte de trabalho e renda que movimenta uma cadeia milionária. Em 2018, um estudo realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) mostrou que, a cada R$ 1 captado e executado por meio da Lei Rouanet, a sociedade recebe de volta R$ 1,59.


“Não é comum haver investimento com tanto retorno assim. Quando se faz, por exemplo, um espetáculo de teatro ou de música, você envolve uma cadeia enorme por trás, que vai desde transporte, alimentação, figurino, contabilidade. É muito maior do que aquilo que a população vê, ou seja, emprega um grupo de pessoas que não é visível no palco”, conclui a professora.


Fonte: Lupa




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