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  • Foto do escritorMateus Pitela

'A Mulher Rei' é celebração da força das mulheres

Multipremiada, Viola Davis protagoniza um épico feito para contar história heróica de guerreiras africanas

Há muito o que se celebrar em 'A Mulher Rei', mas, mais intensamente, fato é que este é um filme sobre mulheres negras fortes e suas dinâmicas, suas almas, mentes e corpos, que entrega um épico fabuloso sobre uma história real. Foto: Divulgação

Existem filmes que, desde seu anúncio, antes mesmo de se tornarem objetos de apreciação, precisam ser olhados com critérios extras. É preciso, sim, atentar para sua narrativa, sua montagem, fotografia, atuações, direção e tudo mais que envolve a análise objetiva de uma peça cinematográfica. Mas existem filmes cujo objetivo, desde sua criação, é serem mais do que objetos de arte. Filmes escritos para enaltecerem histórias invisibilizadas. Filmes concebidos para elevarem personagens desconhecidos ou subestimados. Filmes produzidos para corrigirem injustiças. Filmes pensados para mudarem realidades sociais.


Qualquer produção protagonizada por Viola Davis já seria objeto de comoção, porque temos aqui um caso extremamente peculiar: por que só agora a atriz, detentora de prêmios Tony, Emmy e Oscar, teve a oportunidade de explorar um trabalho como protagonista? Some a isto a trama que este filme se dedicou a contar: ele é baseado numa história real, das guerreiras do Reino de Daomé, o exército de Agoji. O Reino de Daomé é o atual Benin, e as suas guerreiras formavam um exército que chegou a ter oito mil mulheres, responsáveis por proteger o rei, o Estado e lutar contra a força colonial. De forma mais específica, o exército francês, em guerras do século XIX. Não se sabe com exatidão quando este exército foi formado, mas elas podem ter vindo do grupo de caçadoras de elefantes ou das mulheres responsáveis pela segurança do palácio.

Outro ponto de atenção do filme é como as diferenças de gênero próprias do Ocidente não eram uma realidade em Daomé: as mulheres ocupavam cargos essenciais, na política e na sociedade em geral. Mas as Agoji eram mulheres cheias de obstáculos, que não podiam casar, fazer sexo, treinavam dia a noite, não constituíam família e precisavam proteger suas companheiras como a si mesmas. Apesar da França ter conquistado Daomé em 1894, após duas guerras em 4 anos, a ferocidade destas guerreiras era impressionante e o Agoji pode ser considerado o único exército exclusivo de mulheres, com registro histórico. Pra saber mais, procure o livro "Amazons of Black Sparta", de Stanley Alpern.


Considerando-se tudo isso, já sabíamos que 'A Mulher Rei' seria mais do que um filme. É um acontecimento social, fundamental principalmente para a comunidade negra, que se insere no mesmo rol de expectativas que aguarda a vinda de 'Wakanda Forever'. Envolve representividade, visibilidade, protagonismo a quem este lugar não é normalmente oferecido e, claro, uma grande produção.


E aqui temos outro filme que definitivamente conseguiu dar check em todos estes critérios, sem esquecer de ser uma produção de ação capaz de nos arrebatar e fazer com que queiramos ir uma, duas vezes, conferir toda a sua grandiosidade no lugar para o qual é feito, o cinema. Um filme com uma história negra que só pode ser contada agora que uma mulher negra, Viola Davis, tem poder o suficiente para fazer isto acontecer.


Dirigido por Gina Prince-Bythewood, responsável por 'The Old Guard', 'A Mulher Rei' se passa em 1823, e é um épico de ação no qual o amor é parte fundamental, mas sem se desvencilhar um segundo da sua sinceridade e das necessárias verdades históricas, enquanto cumpre sua jornada para ser um sucesso de bilheteria.


O panorama que nos mostra, desde o início, como o filme ruma para o seu mais comercial objetivo, nos é apresentado já nas cenas iniciais: um grupo de homens descansa em um campo perto de uma fogueira. Eles ouvem o farfalhar na grama alta e um bando de pássaros voando com uma brisa. De repente, uma ameaçadora Viola Davis — uma musculosa e ágil mulher que, não esqueçamos, está no auge de seus cinquenta e sete anos, no auge de uma rotina que envolveu meses de práticas de musculação e lutas diárias — e é ela, que interpretando Nanisca, a general Agojie, parece voar da grama, armada com seu facão. Logo, um pelotão inteiro de mulheres aparece atrás dela: com cicatrizes de batalhas, corpos lubrificados por brilho exuberante. São como alucinações mortais, mas assustadoramente palpáveis e assustadoras: as Agojie, definitivamente, são algo a se temer.


Há muito o que se celebrar em 'A Mulher Rei', mas, mais intensamente, fato é que este é um filme sobre mulheres negras fortes e suas dinâmicas, suas almas, mentes e corpos. Prince-Bythewwod emoldura suas guerreiras, valorizando suas gradações de tons de pele, bem como seu amor e atenção umas com as outras. A direção de fotografia belíssima de Polly Morgan faz poesia ao nos mostrar o vínculo compartilhado por estas guerreiras. Esta é a história de amor deste filme — mais do que a eventual quebra do rígido requisito da Agojie, de não se envolver com homens —, e é esta história de amor que você quer ver: pois ela é feita de comprometimento sentimental tão profundo e dedicado quanto os exaustivos treinamentos. Mulheres cuidando umas das outras em meio a rituais, canções, danças e feituras de cabelos e tratos com as feridas, nos leva para um outro lugar, repleto de humanidade e doçura, muito distante da feiura e da dor de imaginar o fio afiado de uma lâmina cortando peles.


Embora Viola Davis seja a estrela óbvia do filme, em uma performance dolorosa, física e psicologicamente exigente, que combina em totalidade com sua interioridade, Mbedu se afirma como uma estrela também — e a devida conexão entre sua Nawi e Nanisca necessita deste desempenho à altura. A jovem atriz se entrega à história de uma mulher que deseja tanto sua autonomia que nunca recua diante de ninguém. Ela alterna altivez, coragem, com melancolia, de forma sublime. Parece difícil crer que uma garota daquele porte irá se transformar em uma guerreira, mas isto só até o instante em que a vemos guerreando.

A grandiosidade que 'A Mulher Rei' inspira nos remete a épicos estabelecidos, feitos para que seu sentimento se sobreponha ao seu cérebro. Há o esplendor empolgante, o nó na garganta. Mas quando seu cérebro está no comando, você compreende e racionalmente pensa na óbvia lógica de não ceder às forças externas brancas, ao desejo de derrubar sistemas opressores, tendo algo maior pelo qual se mobilizar.


E, cá entre nós: quando a Nanisca de Viola Davis reúne suas guerreiras antes da batalha, bravejando como estas mulheres devem lutar ou morrer, fica muito óbvio para nós como é muito mais digno morrer de pé do que viver de joelhos. E as mulheres são historicamente ensinadas a viver de joelhos. Por isso, parte do que torna este filme tão emocionante é como ele reivindica um capítulo da história que derruba as ideias recebidas sobre gênero. A história é mais complexa do que o filme sugere, isto sabemos. Junto com todos os outros predicados de 'A Mulher Rei', é isto que faz de um filme mais do que um filme.

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