Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "A Barca"
Como bom canceriano, não creio em signos, fluídos, simpatias, energias, unicórnios, horóscopo, destino, karmas, shakras, sortes, figas, sinas e, como sabem todos os que estão na mesma barca, o não acreditar também é uma prisão. Ainda assim, na hierarquia dos esoterismos que abusam de nossa boa-fé, nenhum dos citados rivaliza com certos outros que nos rondam para atacar nos momentos mais inconvenientes.
Há alguns dias, levantei os olhos do chopp para escutar um sujeito que se aproximou oferecendo uma oportunidade única. Tratava-se de uma oferta, na verdade uma embrulhada dos diabos, que envolvia aquisição de Bitcoins (melhor, criptomoedas, sorry, Faria Lima), associada à construção de imóveis que integram um conjunto habitacional que supostamente está saindo nos arrabaldes da cidade. Depois de perguntar o que faço da vida e ouvir de mim que sou engenheiro civil (tenho uma cascata para cada situação dessas, geralmente digo professor de artes, mas resolvi dar corda), disse-me que, “como eu sei”, nossa cidade possui um potencial infinito para o crescimento imobiliário, viabilizando consecução tranquila das expectativas de rendimento. Citou estatísticas de alvarás, construções e edificações liberados pela Administração Municipal, números que posteriormente verifiquei serem autênticos, conforme noticiado pela imprensa local, o que me levou a vê-lo até com alguma simpatia; o mercado do estelionato é competitivo e demanda capacitação continuada.
Lendo as metas que ele rabiscou no guardanapo, confesso, foi difícil manter o semblante neutro de investidor. Em matéria de matemática estou para lá da ignorância, mas, pelas contas que fiz rapidamente, em dez anos, conforme o perfil aplicador moderado (porque ganância é um hábito feio, mas, ainda assim, com possibilidade de a economia andar melhor que o previsto, propiciando retornos ainda maiores) eu lucraria cerca de 10 vezes o PIB brasileiro. Cidade promissora, o nosso Eldorado princesino. Os contadores me aguardem.
Firmei compromisso de fechar negócio no próximo dia útil, dei “meu” telefone (na verdade, o do meu compadre Luiz Felipe, que é engenheiro mesmo e, por morar em outra cidade e não ler estas páginas, vai continuar sem entender por que tantos golpistas o procuram) e meu anjo benfeitor foi embora de passinho curto, sorriso de quem roubou mais uma alma para o Pregão dos trambiqueiros.
Que as procure na próxima barca.
Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais
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