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Na memória do Outro

Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "Na memória do Outro"


Muito do que nos chega por acaso rende crônica, e esta ficaria bem melhor se redigida pelo seu protagonista. Como se verá, porém, ele teve suas razões para não concluí-la.


Eu era estudante e, para preencher as disciplinas práticas da faculdade, volta e meia ficava à paisana no Fórum Estadual (aquele das escadarias, em Oficinas), geralmente próximo às Varas Cíveis, rezando para sair uma audiência de instrução e lendo o manual de direito administrativo do Hely Lopes Meirelles, para tudo na vida há voragens estranhas e vocações arqueológicas.


Numa dessas, interpelou-me nosso personagem, patrono de uma das partes na audiência de logo mais, dizendo-me que, em aluno, lera uma das primeiras edições do livro – na década de 60, o que Meirelles dizia não era lei, coisa morosa de editar e muito democrática para o paladar da época; era Decreto-Lei, canetada.


Disse-me que por algum tempo praticou a advocacia em Ponta Grossa – “na época, o que amparava os moços como você era Direito Fundiário” –, mas mudou-se logo para outro Estado. Ultimamente, quase aposentado e num discreto movimento de retorno, dera pra captar algumas causas na região, almejando serenar a falta que lhe fazia a memória nítida do tempo em que cá se radicara, período findo quando (sentindo abertura, foi narrando), desmanchado um noivado contraído pouco antes, desmanchou-se junto a vontade de viver nos Campos Gerais e de viver, mesmo. Agora, sentindo a vitalidade entrar firme na fase crepuscular, meio adoentado que estava, dera para redigir as memórias (“ajuda a me acertar comigo mesmo”) e a voltar para a origem, produzindo prova viva e escrita de que o indivíduo em declínio pode, em plena queda livre, deparar-se com alguma verdade insuspeita que passara despercebida quando ele, tudo pela frente, trilhou o mesmo caminho em sentido inverso.


Depois de anos, encontrei-o por acaso em outro local. Ao vê-lo remoçado e surpreendentemente disposto, perguntei-lhe em que pé estavam as memórias do noivado pretérito. “Estão assim”, ele me respondeu apontando não para algum encadernado que levasse debaixo do braço e sim para seu carro, onde uma senhora sorridente e bastante simpática o esperava.


Não pedi explicações – hoje vejo que, sem elas, a crônica fica melhor.


Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais




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