Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "O velho ponta-grossense"
Nosso último encontro aconteceu na Rua XV de Novembro, mas já não me recordo há quanto tempo. Como de hábito aos domingos pela manhã, deixei o meu apartamento nas redondezas para tomar um café e, ao entrar no recinto, avistei-o casualmente ao fundo, sentado a uma mesa e lendo o jornal. Sempre bem-vestido, trajando desta feita um terno finamente talhado, sapatos de couro brilhante e chapéu. Aproximei-me, sentei-me, demos um aperto de mão e permaneci em silêncio.
Como em outras vezes, aquele senhor começou a me contar suas recordações. Algumas delas eu já conhecia, mas, como bom ouvinte, não lhe interrompi. Estórias repetidas são de valor inestimável, locutor quanto o interlocutor não são exatamente os mesmos da conversa anterior.
Descreveu-me uma Ponta Grossa pretérita, agradavelmente vivida e curtida. Paqueras na Avenida Vicente Machado, sessões de cinema no Cine e Teatro Ópera, domingos de clássico Ope-Guá e bailes de Carnaval no Clube Pontagrossense, com as famílias impecavelmente vestidas. Namoros à distância, até que o amor se provasse real, verdadeiro e eterno. Filho de um médico, descrevia em detalhes fatos dos hospitais São Lucas e 26 de Outubro, em uma época em que se operava sem luvas cirúrgicas. Brincou que se considerava um ponta-grossense originalíssimo, por ter se casado na Catedral e possuir um jazigo no Cemitério São José. Lamentou-se apenas de não poder ter conhecido as belezas naturais da cidade em virtude de um reumatismo que dificultava seu caminhar.
Veio-me uma reflexão: todos conhecemos pessoas como ele, sejam pertencentes à família ou não. Mas não as aproveitamos. Perdemos tempo com frivolidades e deixamos de conhecer a história contada pelos seus próprios protagonistas. Parte da vida é esquecida, memórias se apagam e a tradição se deteriora.
Ao retornar à mesa, percebi que o velho já tinha se ido (gosto do termo “velho”, emana sabedoria, não me importaria de ser chamado dessa forma).
Ao sair, parei para apreciar as inúmeras fotografias em preto e branco expostas na parede do botequim. Uma me chamou particularmente a atenção: a de uma multidão anônima e apressada desembarcando no que hoje se conhece por Estação Saudade. Pessoas que ajudaram a construir uma cidade. Quis acreditar que entre elas se encontravam, além do velho ponta-grossense, meus bisavós, avós e outros familiares. Conversaria com eles mais e melhor, e sobretudo lhes agradeceria pela grande Princesa dos Campos Gerais que nos deixaram como legado.
Texto de autoria de Marcelo Derbli Schafranski, médico reumatologista, Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônica dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais
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