Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "A voz do silêncio"

De tudo, o que mais lembro é o silêncio da tarde, a sinfonia de insetos lá fora, o ressonar do avô no quarto ao lado, o relógio da sala a contabilizar o tempo. Na hora da sesta a rua também dormia seu sono breve, e a casa seria a própria morte, não fosse o ressonar do avô.
No quarto ao lado, a vida pulsava no peito da menina que se fazia de morta, os sentidos todos despertos, à espera do instante da ressurreição.
De repente, um tilintar na cozinha, um ruído de água na torneira, um avivar o fogo, logo o cheirinho de café coado invadiria os quartos e a vida voltaria a pulsar. Morte e renascimento diários era o que eu via na casa dos avós, nas férias escolares.
Gosto de pensar que a cidade natal dorme dentro da gente, como se fora a sesta da tarde à espera do que seja capaz de despertá-la.
O que me faz pensar em Proust, que viu o passado brotar de sua xícara de chá. A cidade, a infância, as pessoas, mas antes a emoção avassaladora até entender o que se passava, chegar na essência de tudo, reencontrar ali um tempo em que já nada mais subsistia, após a morte dos seres amados, a destruição das coisas, apenas o sabor e o odor permaneciam ainda muito tempo, como almas a penetrar o edifício imenso da memória.
A voz do silêncio sempre foi meu despertador pessoal, a me introduzir nas dobras, onde ficam as lembranças já esmaecidas.
Mas a roda da vida vai girando e, hoje, tenho quem me leve a viajar no tempo sem a precisão de silêncios. Netos. Netos que parecem não acreditar que avós já foram crianças, tal o empenho em querer ouvir as histórias do passado.
E eu me entrego, sem resistência.
Banho de chuva? Guerra de lama? Briga de rua? Chego a pensar que talvez exagere, mas não, as mãos esfoladas, as unhas encardidas, os joelhos ralados sempre foram a confirmação da coragem, do arrojo das ideias, das incursões destemidas mato adentro, dos sustos inevitáveis, da corrida desenfreada na hora do aperto.
É sob os alaridos de hoje que me vejo embarcar nesta nave do tempo, na companhia de uma plateia atenta e incrédula.
Quando eles se cansarem, tudo voltará ao silêncio da sesta.
Até que algo inesperado faça a memória vibrar outra vez.
Rosana Braga, é Formada em Letras Português-Francês pela Universidade Católica do Paraná. Tem curso de Mestrado em Teoria da Literatura nesta mesma Universidade. Curso de Francês pela Aliança Francesa de Curitiba, obtendo o diploma de Nancy.
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